quarta-feira, 1 de outubro de 2014

A Dama de Shalott



She has a lovely face; 
God in his mercy lend her grace,
The Lady of Shalott."

Antes do início do reinado de Arthur, toda a Inglaterra arrastava-se em trevas. Havia então um pequeno castelo, perto do local onde depois seria erguida a mais bela das cidades. Era um castro fortificado, ponto antigo de defesa das invasões. Seu guardião não tinha ascendência nobre, porém o seu posto e a sua gentileza o tornaram respeitado pelos poucos que ali habitavam. Foi assim que ganhou o título de Senhor de Shalott, já que seu domínio estendia-se pela margem do pequeno córrego assim chamado, que desaguava no lago de Camelot.

Esse bom Senhor era casado com uma mulher de coração e vontade simples. Há muito desejavam um filho, e a primeira gravidez da Senhora alegrou a todos. Infelizmente, ela não sobreviveu ao nascimento da menina. A criança cresceu recolhida às paredes cinzentas do castro, pois seu pai temia pela saúde frágil da nova Dama do Rio Shalott.


Ela não viu que, em cada lado do pequeno rio, trigo e centeio vestiam a terra e encontravam o céu. Lírios aquáticos e outras plantas cercavam a ilha onde estava o castelo, contornavam a margem, aonde uma estrada levava pessoas para a brilhante e recém construída Camelot.

Nada disso importava a Liliane. Aquele que passasse pelas paredes de pedra do antigo castelo, os homens do campo que empunhavam suas foices de manhã e a noite, no caminho entre o trabalho diário e o descanso noturno, podiam escutá-la cantando, protegida pelas paredes, como um anjo. E mesmo sem nunca a terem visto, sabiam que era bela, a reclusa Dama de Shalott.

E entre as cercas-vivas decoradas com rosas e o barulho amado e constante do rio, ela vivia, sem nada saber do mundo. Não soube de Arthur e seus cavaleiros, ou da bela Camelot.

Aprendeu a costurar e a bordar, e a ensinaram como se comportar em um salão, mesmo que jamais saísse da casa de seu pai. Tocava harpa e tecia. Assim passaram-se anos e assim cresceu a Dama de Shallot.


Na noite em que fez quinze anos, a paz foi quebrada no castelo. Pois o senhor seu pai temia a velhice e a morte, sua filha iria ficar desamparada. E ele avisou-a que era a hora de casar e deixar o castelo no rio. Talvez com um dos cavaleiros do rei. Assim, Liliane seria levada a Camelot.

Começaram os preparativos. O Senhor enviou emissários, organizou as comitivas. E Liliane ficou com a tarefa de tecer um vestido para usar ao ser apresentada ao rei. Ela iria se dedicar a esse serviço, porque teria que ser uma roupa digna da Dama de Shalott.

A jovem iria obedecer ao seu pai e senhor sem questionar ou se entristecer. Porém, nessa mesma noite uma voz sussurrou em seu coração enquanto ela escolhia a linha com que teceria a sua primeira roupa de baile. "A maldição cairá sobre ti se olhares diretamente para Camelot".

Nada disse a ninguém. Não sabia o que poderia ser essa maldição, mas sabia como evitá-la. E meses demorou a escolher os fios mais preciosos, que seu pai mandou vir de longe. Pediu um tear novo, um fuso mais afiado... Até mesmo um espelho novo ela pediu, para que iluminasse mais o seu quarto na torre mais alta de Shalott.

Prosseguiu a sua vida tranqüila, e dedicou-se ao trabalho de tecer demoradamente um conjunto completo. Não só para si, mas para seu pai e seus serviçais. Só que agora, sua atenção dispersava-se e olhava pelo espelho. Nos espaços vazios, onde ele refletia a paisagem da janela, sombras do mundo entravam no quarto. Viu um grupo de donzelas, vestidas em cores alegres brincando, um abade de negro em seu cavalo, um jovem pajem com um traje em um vermelho tão brilhante que mesmo no espelho ele brilhava na estrada para Camelot.

Mesmo assim, ela tecia. A vida que ela jamais conhecera se intrometia nas sombras do espelho. Por horas, ela parava de tecer e olhava o reflexo das luzes de um funeral ou as flores de um casamento. E bordava o que via, as imagens embaçadas e distantes, enfeitando as mantas e roupas de montaria que iria usar. Um dia, largou a capa em que trabalhava. Reclinou-se e deu um longo suspiro. "Estou quase enjoando de sombras", disse a Dama de Shalott.


Um dia, estava em seu tear quando ouviu alguém cantando uma canção alegre do lado de fora de sua janela. Ergueu os olhos para o espelho. Um cavaleiro, de armadura brilhante, cabelos negros como carvão, montando em um cavalo branco cavalgava pela estrada. Pelo reflexo, encantada observou seu perfil distinto e seu sorriso sincero, enquanto a música chegava a seu ouvido. Seu escudo tinha os símbolos do rei, ele andava despreocupado. Porém, uma cobra espantou sua montaria, e pelo espelho ela assistiu a grave queda de Sir Lancelot.

Assustada, ela largou o tear e seu tecido. Levantou-se, jogando as linhas ao chão. Deu três passos no seu pequeno quarto, e dirigiu-se à janela. Viu as plantas aquáticas florindo, o cavaleiro inconsciente enquanto o rio corria tranqüilo, o caminho subindo sem ninguém o percorrendo... E seus olhos fixaram-se em Camelot.

Vindo de lugar algum, o vento varreu o aposento. O tecido bordado voou pela janela, espantando um corvo, que grasnou, um som terrível e de mau agouro. Um estilhaçar, tilintar de vidros partidos nas pedras frias... O espelho quebrara de lado a lado. "A maldição caiu sobre mim!", lamentou-se a Dama de Shalott.

Sabendo que estava presa e condenada, nada mais podia fazer. Chamou os criados e serviçais, avisou seu senhor e pai. Acompanhou com os olhos sem sair do salão de seu castelo quanto saíram para socorrer o cavaleiro. Seguiu com os criados quando eles o colocaram em um quarto de hospedes e a partir daquele momento, não saiu mais da cabeceira de Sir Lancelot.

Por dois dias e duas noites, velou a inconsciência do cavaleiro. A mente era constantemente assombrada pela lembrança do espelho partido, enquanto seguia com os olhos os traços firmes do homem adormecido. Parecia apenas um menino, apesar de mesmo ela já ter ouvido relatos de seus feitos e suas batalhas. Será que ele ficaria ali muito tempo antes de voltar para o rei, na cidade de Camelot?

No amanhecer do terceiro dia, ele abriu os olhos. Em um primeiro momento, ficou assustado sem saber onde estava. Passou a mão no cabelo, como se realmente fosse uma criança. E ficou surpreso ao ver perto de si a Dama de Shalott.

Ela, com voz doce e suave, explicou tudo. Contou de como o vira através do espelho e ouvira sua canção. E como se espantara ao vê-lo cair, inerte, com o susto que sua montaria levara. Relatou como passara os últimos dois dias ali, a cabeceira de Sir Lancelot.


E passaram-se algumas semanas antes que ele a deixasse. Mesmo sabendo que nunca o teria, Liliane entregou-se ao cavaleiro, tornando-se sua amante e sua amiga até o dia em que finalmente ele partiu para Camelot.

Dentro de si, a certeza de que ele jamais voltaria. Entristecida, trancou-se no antigo quarto, agora já sem o espelho, companheiro de tantas tardes. Foi em um misto de apreensão e alegria quando a Lua mudou e descobriu que carregava em si um herdeiro para o castelo de Shalott.

Não podia esconder tal evento de seu pai e o foi procurar. O bom homem desesperou-se e bradou aos Deuses antigos porque aquilo acontecia. Ouvira todas as histórias de seu tempo, da paixão do primeiro cavaleiro pela rainha branca e sabia que nada de bom poderia vir da linhagem de Sir Lancelot.

Insistiu para que a filha se submetesse aos cuidados da parteira e voltasse à vida de antes. Que ela cantasse dentro das muralhas da fortificação, encantando os passantes ao entardecer. Que tecesse sua manta, com as imagens do mundo que apenas entrevia. Ela não aceitou, e antes que o velho pudesse fazer algo, fora chamado para servir ao senhor de Camelot.

Eram tempos de guerra. Invasores encharcavam os campos de sangue. E a moça sabia que o pai não voltaria. Viu o primeiro homem que amara por ferros em sua pele e em seu cavalo. Estava lá quando o escudo com as cores da casa foi entregue. Recebeu um beijo na testa, quando seu pai, já montado, esqueceu a decepção para demonstrar seu amor. Despediu-se enfim, e antes de mais um mês, ela tornou-se a Senhora de Shalott.

Sozinha, cercada por criados fieis, passou a dirigir a casa. Continuou a sua reclusão, mas agora voluntária. Recebia os tributos das terras que lhe pertenciam e concedia os direitos dos seus vassalos. Voltou a tecer, mas ao invés de sombras refletidas pelo espelho, bordava a vida de todos os dias, à sombra do grande castelo de Camelot.

No final do tempo devido, sentiu as dores que já esperava. O nascimento foi longo, a Senhora era frágil e pequena. O menino era robusto e forte, e gritou ao sair para o mundo. Sabia que nome escolher, pois queria chamá-lo como um homem da terra de seu pai. Mas o sobrenome teria que ser dela. E assim, a criança batizou-se Phelippe Riverson, filho de Shalott.


Os anos passaram, e assim ela criou seu filho. Da mesma forma isolada e distante, como se o velho castelo fosse o único lugar do mundo. Não soube das batalhas que seu pai travou, de sua traição e redenção, dos feitos de seu irmão ou mesmo da grande batalha que seu rei travou contra o próprio filho. Apesar de seu alheamento, o jovenzinho recebia a educação de um nobre, como sua mãe fora ensinada a ser uma dama; e Liliane, sempre que o filho dormia, voltava ao bordado, com mãos menos firmes e a vista mais cansada. No centro do grande manto que começara a fazer, estava o castelo de Camelot.

Um dia, no meio da noite, acordou inquieta. Com o coração apertado foi ao quarto do filho. Cada vez mais parecido com o pai, o rapaz dormia tranqüilo. Olhou pela janela de seu quarto, na direção do castelo, e nesse instante, um vento gelado soprou como se viesse das paredes de pedra. Um corvo grasnou ao longe, e uma certeza calou fundo na alma da Senhora de Shalott.

O amanhecer do dia seguinte deu-lhe poucas certezas e nenhuma tranqüilidade. Porém, ao correr dos dias, os boatos começaram e as notícias pouco a pouco lhe confirmaram a suspeita. O rei Artur anunciava ao reino o assassinato de Sir Lancelot.

Não derramou lágrimas, não entoou seu pranto. Respeitou o luto ordenado pelo rei. Mas ela sabia o que fazer, independente das ordens de Camelot.

Chamou o filho, e mandou que ele se armasse. Usando sua melhor roupa o encontrou no pátio, ansioso. De uma só fez, desfiou toda a sua história, de sua vida isolada e da paixão por um dos mais valorosos cavaleiros do reino. Da morte de seu pai e do nascimento do jovem Phelippe. Só não contou da maldição que ela atraíra para a casa de Shalott.

Contou também sobre a morte do cavaleiro, com os poucos detalhes que chegaram aos seus ouvidos. Para sua imensa tristeza, viu a face do filho crispar-se e jurar vingança Sabendo que seu destino estava traçado, Liliane ouviu o pedido de Phelippe para juntar-se aos cavaleiros em Camelot.

Pela segunda vez, preparativos foram feitos. Deveriam sair em comitiva, com empregados e serviçais, a pompa de uma pequena casa nobre. Ela deixou o filho preparar tudo. No amanhecer do dia em que partiriam, porém, ela o chamou fora das muralhas, na margem do pequeno rio. Mostrou um pequeno barco, forrado com uma bela tapeçaria bordada, e disse-lhe que assim chegariam ao castelo, descendo o rio Shalott.

Pela primeira vez, a Senhora viu os salgueiros brilhantes e os alámos trêmulos na brisa suave e fria. Teve um arrepio ao ver sua face bela, mas já envelhecida nas ondas que correm para sempre, fluindo para Camelot.

O trajeto demorou pouco. Em menos de hora, estavam aproximando-se do ancoradouro da cidade. As imensas paredes de pedra eram muito maiores do que ela tinha imaginado, embora tivesse as bordado com precisão. Apertou os olhos e viu um barco e um grupo de pessoas nobremente vestidas no lugar onde deveriam atracar. Viu os rostos surpresos ao notarem a chegada do barco da Senhora de Shalott.

Um homem já velho, mas ainda imponente perguntou quem eles eram e o que desejavam. Sem sair do seu barco, sentada em sua tapeçaria, Liliane contou toda a sua história, parando no exato ponto em que dava a luz o filho de Sir Lancelot.

A corte parou, atônita. Artur pareceu não acreditar em suas palavras. Porém aproximou-se e observou com atenção o rapaz a sua frente. Rosto forte, olhos que perfuravam uma alma, a ânsia da luta em seu coração e os cabelos negros como asas de um corvo. Perguntou-lhe o que desejava, e o jovem respondeu que viera até ali para juntar-se aos nobres cavaleiros de Camelot.

Artur permitiu que ele desembarcasse e virou-se para auxiliar Liliane a fazer o mesmo. Ela sorriu e recusou a mão estendida. Disse que não viera para ficar, somente acompanhara o filho. Intrigado, o rei perguntou se ela voltaria para o castelo de Shalott.

O mesmo inexplicável vento que ela sentira por duas vezes correu em sua pele. Sorriu com tristeza e doçura enquanto explicava a Artur a maldição que se abatera sobre sua casa. Como sempre soubera o que significava ter se apaixonado por Lancelot.

A maldição não era só sua, ela disse. Pois era também a de todas as mulheres daquela terra tão sofrida. Pois quantas mães, filhas, esposas, amantes, enamoradas, perderam os homens que amavam em guerras? Quantas, como ela, teriam perdido em seqüência, o pai, depois o amásio, e por fim viam o filho partir para morrer pelo ideal de Camelot?

O barco começou a mover-se, afastando Liliane do velho rei. Sorriu-lhe uma última vez, acenou para seu filho, e enquanto o barco afastava-se, começou a cantar. As cores esvaíram-se de seu rosto e cantando ela morreu. Ao olhar seu vulto, envolto em tecido branco e coroado por cabelos dourados, Artur balançou a cabeça, cônscio do mal que causava à sua terra para trazer-lhe um bem maior. Colocou a mão no ombro de Phelippe, dizendo em epitáfio: "Ela possuía um belo rosto e Deus com sua sabedoria deu-te a ela como uma de suas graças. Despeça-se de sua mãe, a Senhora de Shalott".



FONTE: Ana Cristina Rodrigues

Nenhum comentário:

Postar um comentário

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...