Demeter tinha o espirito generoso. Uma das poucas pessoas a quem tratou com dureza foi Erisicton, filho de Triopas. Liderando vinte camaradas, Erisicton atreveu-se a invadir um bosque que os pelasgos haviam plantado para ela em Dotio e começou a cortar as árvores sagradas para usar a madeira na construção de seu novo salão de banquetes. Demeter assumiu a forma de Nicipe, sacerdotisa do bosque, e ordenou-lhe, polidamente, que desistisse de seu proposito. Mas só quando ele a ameaçou com o machado é que ela se revelou em todo seu esplendor e o condenou ao sofrimento perpetuo da fome, por mais que comesse. De volta a sua casa, Erisicton passou a empanturrar-se o dia todo à custa de seus pais, mas, quanto mais comia, mais fome sentia e mais magro ficava. Quando finalmente os pais não puderam mais arcar com as despesas de sua alimentação, ele passou a vagar pelas ruas, alimentando-se de lixo. O contrário aconteceu com Pandareu, o Cretense: quando ele roubou o cão de ouro de Zeus, Demeter, sentindo-se vingada pela morte de Jásio, concedeu-lhe o dom real de jamais sofrer de dor de barriga.
Demeter perdeu sua alegria para sempre quando foi-lhe arrebatada a jovem Core, que mais tarde ficou conhecida como Perséfone. Hades apaixonou-se por Core e foi pedi-la a Zeus. Com receio de ofender o irmão mais velho com uma negativa categórica e, por outro lado, sabendo que Demeter não o perdoaria se Core ficasse confinada no Tártaro, Zeus respondeu de forma diplomática que não podia dar seu consentimento e tampouco nega-lo. Isso encorajou Hades a raptar a moça enquanto ela colhia flores no campo - o que pode ter ocorrido tanto em Ena, na Sicília, como em Colono, na Ática; ou em Hermione; em algum lugar de Creta; perto de Pisa ou de Lerna; nas redondezas de Feneu, na Arcádia; em Nisa, na Bocai, ou em qualquer outro lugar das distantes regiões que Demeter visitou em sua busca errante atrás de Core, embora seus próprios sacerdotes afirmam que tenha sido em Eleusis. Demeter procurou por Core incansavelmente durante nove dias e nove noites, sem comer nem beber, gritando seu nome o tempo todo, sem sucesso. As únicas noticias que pode obter vieram da velha Hecate, que, um dia de manhazinha, ouvira os gritos de Core: "Um estupro! Um estupro!", mas, mesmo tendo acorrido ao local, não encontrara nenhum vestígio dela.
No decimo dia, apos um desagradável encontro com Posídon entre os rebanhos de Onco, Demeter chegou disfarçada a Eleusis, onde foi recebida com toda hospitalidade pelo rei Celeo e sua mulher, Metanira, e convidada a permanecer ali como ama-de-leite de Demofonte, o príncipe recém-nascido. A coxa do rei, Iambe, tratou de consolar Demeter com versos comicamente lacivos, e a ama-seca, a velha Baubo, persuadiu-a a beber água de cevada com uma brincadeira: pôs-se a gritar como se estivesse em trabalho de parto e, inesperadamente, tirou de dentro da saia o filho de Demeter, Iaco, que saltou para os braços da mãe e a beijou.
"Oh, com que avidez você bebe!", gritou Abante, o filho mais velho de Céleo, enquanto Demeter bebia de um só trago um jarro de água de cevada aromatizada com menta. Demeter lançou-lhe um olhar severo e o converteu em lagarto. Sentindo-se depois um pouco envergonhada, decidiu prestar um favor a Celeo, concedendo imortalidade a seu filho Demofonte. Durante a noite ela o manteve sobre o fogo, a fim de queimar sua mortalidade. Metanira, filha Anfictiao, entrou por acaso no quarto antes que o ritual acabasse e quebrou feitiço, causando a morte de Demofonte. "A minha casa é desventurada!", lamentou-se Celeo, chorando o destino de seus dois filhos, e desde então passou a chamar-se Disaules. "Seque tuas lágrimas, Disaules", disse Demeter. "você ainda tem três filhos, inclusive Triptolemo, a quem desejo conferir dons tão grandes que lhe farão esquecer a perda desses dois."
Triptolemo, que guardava o rebanho de seu pai, havia reconhecido Demeter e dado a ela as pistas de que necessitava: dez dias antes, seus irmãos Eumolpo, que era pastor, e Eubuleu, que era guardador de porcos, estavam nos campos dando pasto aos animais quando, de repente, abriu-se uma fenda na terra que tragou os porcos de Eubuleu diante de seus próprios olhos. Depois, com um forte ruído surdo de cascos, apareceu uma carruagem puxada por cavalos negros, que se arremessou pela fenda. A face do condutor era invisível, mas seu braço direito apertava com força uma moça que gritava. Eubuleu relatou o acontecido a Eumolpo, que fez dele tema de um lamento.
A Zeus restou somente uma alternativa. Enviou Hermes com uma mensagem para Hades: "Se você não devolver Core, estaremos todos perdidos", e outra para Demeter: "Poderá ter a sua filha de volta desde que ela não tenha provado da comida dos mortos."
Desde o sequestro, Core se negara a comer até mesmo uma simples casca de pão, de maneira que, para disfarçar o vexame, Hades viu-se obrigado a dizer-lhe gentilmente: "Minha menina, você não me parece feliz aqui, e sua mãe chora por ti. Portanto, decidi mandá-la de volta para casa."
Core parou de chorar e Hermes a ajudou a subir em sua carruagem. Mas, no momento em que partia para Eleusis, Ascálafo, um dos jardineiros de Hades, começou a gritar com sarcasmo: "vi a senhora Core comer sete grãos de uma romazeira do jardim, e estou disposto a testemunhar que ela provou da comida dos mortos!" Hades sorriu e ordenou que Ascálafo se pendurasse na traseira da carruagem de Hermes.
Em Eleusis, Demeter abraçou Core, triunfante, mas, ao saber que a filha havia provado do malfadado fruto, ficou ainda mais abatida, e reiterou: "Não porei mais os pés no Olimpo nem retirarei a maldição que lancei sobre a terra." Então Zeus convenceu Reia, sua mãe e também de Hades e Demeter, a interceder junto a ela, e, Finamente, chegou-se a um acordo: Core deveria passar três meses do ano em companhia de Hades como Rainha do Tártaro, sob o nome de Perséfone, e os nove meses restantes com Demeter. Hecate se dispôs a garantir o cumprimento do acordo e a velar constantemente por Core.
Finalmente, Demeter aceitou voltar ao Olimpo. Antes de sair de Eleusis, ensinou seu culto e seus mistérios a Triptolemo, Eumolpo e Celeo (junto com Diocles, rei de Feres, que a ajudara a procurar por Core durante todo aquele tempo). Mas puniu Ascalafo por sua intriga, atirando-o a um buraco e cobrindo-o com uma rocha enorme. Mais tarde, libertado por Héracles, ela o transformou em uma coruja de orelhas curtas. Demeter também recompensou os fenícios da Arcádia - em cuja casa ela descansou depois de ter sido ultrajada por Posídon - com todos os tipos de grãos, mas proibiu-os de plantar feijão. Um certo Ciamites foi o primeiro a ousar planta-lo. Ele tem um altar junto ao rio Cefiso.
A Triptolemo, Demeter deu trigo para semear, um arado de madeira e um carro puxado por serpentes e o mandou percorrer o mundo todo, ensinando a humanidade a arte da agricultura. Mas primeiro deu-lhe algumas aulas na planicie Rariana, motivo pelo qual há quem o chame de filho do rei Rarus. E a Fítlo, que a havia tratado com gentileza as margens do rio Cefiso, ela deu uma Figueira, a primeira jamais vista na Ática, e ensinou-o a cultiva-la.
Core, Perséfone e Hecate eram, claramente, a Deusa em Tríade, ou seja, donzela, ninfa e velha, em uma época em que só as mulheres praticavam os mistérios da agricultura. Core representa o trigo verde; Perséfone, a espiga madura; e Hécate, o trigo colhisdo - a "velha esposa" da área rural da Inglaterra. Mas Demeter era o titulo geral da deusa, e a Core concedeu-se o nome de Perséfone, o que torna a historia toda confusa. O mito da aventura de Demeter nos campos nos arados três vezes indica um rito de fertilidade que sobreviveu até há pouco tempo nos Balcãs: a sacerdotisa dos cereais copulava em público com o rei sagrado no período da semeadura outonal, para assegurar uma boa colheita. Na Ática, o trabalho de arar o campo era feito primeiro na primavera. Dai, depois da colheita do verão, arava-se perpendicularmente com uma relha mais fina e, por fim, quando se haviam oferecido os sacrifícios aos deuses da Lavoura, arava-se de novo na direção original durante o mês outonal de pianépsio, para preparar a semeadura.
Perséfone (de phero e phonos, "a que traz destruição"), também chamada Persefata em Atenas (de ptersis e ephapto, "a que estabelece a destruição") e Proserpina ("a temida') em Roma, era, ao que parece, um titulo da ninfa quando sacrificava o rei sagrado. O titulo de "Hecate" ("uma centena") parece referir-se aos cem meses lunares do reinado do rei e a colheita centuplicada. A morte do rei por fulminação, ou despedaçado por mordidas de cavalos, ou pelas mãos do tanist, era seu destino comum na Grécia primitiva.
O rapto de Core por Hades compõe parte do mito em que a trindade helênica de deuses forçosamente se casa com a deusa tripla pré-helênica: Zeus com Hera, Zeus ou Posídon com Demeter, Hades com Core - como no mito irlandês, Brian, Iuchar e Iucharba casam-se com a deusa tripla Eire, Fodhla e Banbha. Isso se refere a usurpação masculina dos mistérios femininos da agricultura em tempos primitivos. Assim, o incidente da negativa de Demeter de proporcionar trigo para a raça humana é apenas mais uma versão da conspiração de Ino para destruir a colheita de Atamante. Além disso, o mito de Core explica o enterro, durante o inverno, de uma boneca feita de cereais que se desenterrava no inicio da primavera, quando começava a brotar. Esse costume pré-helênico sobreviveu nas zonas rurais, durante a época clássica, e se encontra ilustrado nas pinturas de jarros em que aparecem homens tirando Core de um monte de terra com enxadas, ou rompendo a machadadas a cabeça da Mãe Terra.
A historia de Erisicton, filho de Triopas, é uma anedota de cunho moral: entre os gregos, da mesma maneira que entre os latinos e os irlandeses primitivos, a derrubada de um bosque sagrado era punida com a pena capital. Mas uma fome desesperadora e insaciável, que os elisabetanos chamam de "lobo", não era um castigo apropriado para a derrubada de árvores sagradas, e o nome de Erisicton - filho também de Cecrope, o patriarcalista e introdutor dos bolos de cevada - significa "o que rasga a terra", o que sugere que seu verdadeiro crime foi o de atrever-se a arar sem o consentimento de Demeter, como Atamante. O roubo do cão dourado por Pandareu indica a intervenção cretense na Grécia, quando os aqueus tentaram reformar o ritual agrícola. Esse cão, arrebatado a deusa Terra, parece ter sido a prova evidente da independência do rei supremo aqueu em relação a ela.
Os mitos de Hilas ("do bosque"), Adônis, Litierses e Lino, descrevem o luto anual pelo rei sagrado, ou pelo rapaz que o substituta, sacrificado para apaziguar a deusa da vegetação. Esse mesmo substituto aparece na lenda de Triptolemo, que conduzia em carro puxado por uma serpente levando sacos de trigo, para simbolizar que sua morte trazia abundancia. Ele era também Plutus ("rico"), engendrado no tempo arado, de quem Hades tomou emprestado o titulo eufêmico "Plutão". Triptolemo (triptolmaios, "três vezes ousado") pode ser um titulo concedido ao rei sagrado por haver-se atrevido três vezes a lavrar o campo e a copular com a sacerdotisa do cereal. Celeo, Diocles e Eumolpo, a quem Demeter ensinou arte da agricultura, representam as cabeças sacerdotais da Liga Anfictiônica - Metanira é descrita como filha de Anfictiao - que lhe rendiam homenagens Eleusis.
Era em Eleusis ("advento"), uma cidade micênica, que se celebravam os Grandes Mistérios de Eleusis no mês chamado boedrômio ("correr em busca de ajuda"). Os embevecidos iniciados de Demeter consumavam simbolicamente o romance da deusa com Jásio, ou Triptolemo, ou Zeus, em um aposento secreto do santuário, movendo para cima e para baixo um objeto fálico dentro de uma bota alta de mulher. Portanto, Eleusis parece ser uma corruptela deEilythuies, "o templo" daquela que se enfurece em um lugar de emboscada. Os mistagogos, vestidos de pastores, entravam então com gritos joviais e exibiam uma ventoinha de limpar trigo que continha o menino Brimus, filho de Brimo ("a irada"), fruto imediato desse casamento ritual. Brimo era um titulo de Demeter, e Brimus, um sinônimo de Plutus, mas seus celebrantes o conheciam mais como laco - do hino orgiático Iacchus, cantado no sexto dia dos Mistérios, durante uma procissão de tochas que partia do templo de Demeter.
Eumolpo representa os pastores cantores que traziam a criança; Triptolemo é um vaqueiro a serviço da deusa-Lua lo como vaca, que regava as sementes de trigo; e Eubuleu era um guardador de porcos a serviço de Marpessa, Forcis, Cere ou Cerdo, a deusa-porca que fazia germinar o trigo. Eubuleu foi o primeiro a revelar o destino de Core, pois "guardados de porcos", no mito europeu primitivo, significa adivinho ou mago. Assim Eumeu ("buscar o bem"), porqueiro de Odisseu, recebia o nome de dios ("deiforme") e, embora na época clássica já fizesse muito tempo que os guardadores de porcos tinham deixado de exercer a arte da profecia, eles ainda continuavam a sacrificar porcos em honra de Demeter e Perséfone, atirando-os de precipícios naturais. Eubuleu parece não se ter beneficiado da instrução de Demeter, provavelmente porque seu culto como deusa-porca havia sido suprimido em Eleusis.
"Rarus", que signifique "filho abortado" ou "ventre", é um nome pouco apropriado para um rei e seguramente se referia ao ventre da mãe Cereal, da qual o trigo brotava.
lambe e Baubo personificam as canções obscenas em métrica iambica, que eram cantadas para aliviar a tensão emocional durante os Mistérios de Eleusis, mas lambe, Demeter e Baubo formam a conhecida tríade de donzela, ninfa e velha. As velhas amas no mito grego quase sempre são representações da deusa como velha. Abante se transformou em um lagarto porque os lagartos se encontram nos lugares mais tórridos e secos e podem viver sem água. Essa é uma anedota de cunho moral, contada para ensinar as crianças o respeito aos mais velhos e a reverencia aos deuses.
A Estória da tentativa de Demeter de tornar Demofonte imortal é semelhante aos mitos de Medeia e Tetis. Ela se refere, por um lado, ao difundido costume primitivo de "imunizar" crianças contra os maus espíritos, rodeando-as com fogo sagrado no momento do nascimento, ou com uma grelha quente colocada debaixo delas; e, por outro, ao costume de queimar crianças ate a morte como sacrifício em substituição ao do rei sagrado, concedendo-lhes assim a imortalidade. Celeo, o nome do pai de Demofonte, talvez signifique "queimador", além de "pica-pau" ou "feiticeiro".
Existia um tabu primitivo sobre os alimentos de coloração vermelha, que só podiam ser oferecidos aos mortos; e supunha-se que a romã brotava - como a anêmona escarlate de oito pétalas - do sangue de Adônis, ou Tamus. Os sete grãos de romã representam talvez as sete fases da Lua, durante as quais os agricultores esperam surgir os primeiros talos verdes da espiga. Mas Perséfone comendo a romã e originalmente Sheol, a deusa do Inferno que devorou Tamus, ao passo que Ishtar (a própria Sheol, sob uma aparência distinta) chora para apaziguar o fantasma do defunto. Hera, como antiga deusa da morte, também segurava uma romã.
O ascalaphos, ou coruja de orelhas curtas, era um pássaro de mau agouro, e a fábula sobre seu modo de agir é relatada para explicar o barulho das corujas em novembro, antes que se iniciassem os três meses de ausência de Core durante o inverno. Héracles libertou Ascalafo.
A figueira que Demeter deu de presente a Fitalo, membro de uma das famílias mais importantes da Atica, significa simplesmente que a pratica da caprificação da figueira - a polinização da árvore domestica com um ramo da árvore silvestre - deixou de ser uma prerrogativa feminina ao mesmo tempo que deixou de sê-lo também a agricultura. A proibição de que os homens plantassem feijão parece ter sobrevivido a proibição do trigo devido a estreita relação existente entre o feijão e os fantasmas. Em Roma, o feijão era jogado aos fantasmas durante o festival de Todas as Almas, e, se de algum deles brotasse uma planta, a mulher que comesse seus frutos ficaria gravida de um fantasma. Por isso os pitagóricos abstiveram-se de comer feijão, com medo de negar a um ancestral possibilidade de reencarnar.
Diz-se que Demeter chegou a Grécia vindo de Creta e desembarcou em Tórico, na Ática (Hino a Demeter 123). Isso é bastante provável: os próprios cretenses haviam se estabelecido na Ática, onde foram os primeiros a explorar as minas de prata em Laurio. Além disso, Eleusis é uma localidade micênica, e Diodoro Sículo (V 77) diz que ritos similares ao eleusinio se realizavam em Knossos para todos os que queriam participar deles e que (V 79), segundo os cretenses, todos os ritos de iniciação foram inventados por seus ancestrais. Mas a origem de Demeter deve ser procurada na Líbia.
Segundo Ovídio, as flores que Core colhia eram papoulas. Uma imagem da deusa com flores de papoula nos cabelos foi encontrada em Gazi, em Creta. Outra forma de deusa encontrada em Palaiokastro segura papoulas na mão. E no anel de ouro do tesouro da Acrópole de Micenas, uma Demeter sentada entrega papoulas a uma Core de pé. As sementes de papoula eram utilizadas como condimento para fazer pão, e estão naturalmente associadas a Demeter, já que crescem nos campos de cereais. Mas Core colhe ou aceita papoulas devido a suas propriedades soporíferas e porque sua cor escarlate promete a ressurreição. Ela esta prestes a se retirar para seu sono anual.
FONTE: HISTÓRIA DA MITOLOGIA GREGA
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