domingo, 5 de junho de 2016

QUANDO EU ME FIZ FRUTO


" A sombra da lua fui concebida rapaz e rapariga ...
mas quando nasci foi sacrificado Adão, 
foi imolado aos vendedores da noite. 
Minha mãe baptizou-me nas águas do mistério 
para encher o vazio da minha outra essência, 
colocou-me à beira de todos os abismos 
e entregou-me ao estrondo das perguntas. 
Dedicou-me à Eva das vertigens 
e amassou-me em luz e trevas 
para que me tornasse mulher centro e mulher lança 
trespassada e gloriosa 
anjo dos prazeres sem nome. 
Estrangeira cresci e ninguém me colheu o trigo. 
Desenhei a minha vida numa folha branca, 
maçã que nenhuma árvore gerou, 
mas depois rompi-a e saí dela 
em parte vestida de vermelho, em parte branco. 
Não habitei no tempo 
nem estive fora dele 
porque amadureci nas duas florestas. 
Lembrei-me antes de nascer 
que sou uma multidão de corpos 
que dormi longamente 
que longamente vivi 
e quando me tornei fruto 
conheci o que me esperava. 
Pedi aos feiticeiros que cuidassem de mim 
e levaram-me com eles. 
Era 
o meu riso 
terno 
a minha nudez 
azul 
e o meu pecado 
tímido. 
Voava numa pena de pássaro 
e fazia-me travesseiro na hora do delírio. 
Eles cobriram-me o corpo de amuletos 
e untaram-me o coração com o mel da loucura. 
Guardaram os meus tesouros e os ladrões dos meus tesouros 
trouxeram-me silêncios e histórias 
e prepararam-me para viver sem raízes. 
E fui-me embora a partir daí. 
Nas nuvens de cada noite reincarno 
e viajo. 
Só eu me despeço de mim 
só eu me abro a porta. 
O desejo é o meu caminho e a tempestade a bússola. 
Em amor, em nenhum porto lanço ferro. 
Abandono à noite a maior parte de mim mesma 
e reencontro-me apaixonadamente. 
Misturo fluxo e refluxo 
vaga e areia da margem 
abstinência da lua e os seus vícios 
amor 
e morte do amor. 
De dia 
o meu riso pertence aos outros 
e é meu o meu jantar secreto. 
Conhecem-me os que entendem o meu ritmo, 
seguem-me 
mas não me alcançam nunca. " 


FONTE -Molisa

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