Sonhei que estava num vale lamacento meio escuro e de uma extensão que os olhos eram incapazes de abarcar. Neste vale eu vi atravessarem dezenas de milhares de almas, cada uma delas caminhando por cima de uma lama de cor marrom-escura. O local era meio lúgubre, obscuro, tétrico.
Comecei a caminhar por toda a sua extensão, por horas e horas a fio. Vi as almas peregrinando pelo vale e cada uma levando consigo alguma bagagem, uma espécie de sacola com alguns dizeres. Vi pessoas carregando um saco escrito “crenças”; outras estava escrito “carreira”; em outras se podia ler “filhos” ou “esposa” ou “pais”; algumas continham a palavra “comida”, “bebida” ou “vícios”; cada qual carregava um saco, maior ou menor, onde continha a imagem de seus apegos. Os sacos mais pesados que pude ver estavam escrito “medos”; outros estava escrito “mágoas”; nos sacos maiores e mais pesados estava escrito “orgulho”, “egoísmo” e vi vários escrito “vaidade”. Tudo isso que essas almas carregavam lhes criava uma carga maior ou menor, com mais peso ou menos peso.
O drama que elas viviam era ter que atravessar todo aquele lodo com sacos ou bagagens tão pesadas, e conseguir seguir em frente. Pude notar almas cruzando a lama que começavam a afundar; outras, que carregavam sacos mais pesados, submergiam ainda mais; havia algumas almas que, de tanto fardo que levavam consigo, já não podiam sequer prosseguir, e acabavam afundado até o pescoço, incapazes de se mover. Mas mesmo essas almas que estavam no fundo da lama não soltavam o saco pesado que conduziam pelo vale. Quanto mais pesado era o saco, mais a alma afundava e mais presa ficava.
Continuei caminhando e vi almas nas mais diversas situações. Vi também miríades de focos de luzes que desciam do céu e se aproximavam das almas no fundo da lama, pedindo que largassem o saco, para que ficassem mais leves e pudessem ser resgatadas. Muitas delas, mesmo presas até o pescoço, se recusavam a soltar sua carga pesada. “Você ficará presa até soltar seu peso” disse um foco de luz. “Não quero soltar” disse a alma cujo saco estava escrito “orgulho” e que estava totalmente envolvida pela lama e incapaz de se mexer. Mesmo estagnada e presa, elas se agarravam fortemente ao seu objeto de apego e ficavam lá, paradas, afundando.
Algumas almas tentaram construir casas, palácios e fixar moradia definitiva. No momento em que terminavam suas construções, sua residência começava a afundar, e elas passavam a sofrer pelo sentimento de perda. Algumas eram tomadas pela lama junto com suas criações. Outras ficavam com medo de andar e afundar, mas, por incrível que pareça, mesmo paradas elas afundavam lentamente. Quem não seguisse em frente, naufragava inevitavelmente no excruciante lamaçal.
Caminhei mais e mais, por dias ou até semanas, e vi também umas poucas almas que não levavam coisa alguma consigo. Essas andavam bem mais rapidamente, deixavam as outras para trás, e nessa condição, não afundavam. Observei outras almas que levaram seus sacos por muito tempo, mas num certo momento se cansaram de carregar tamanho peso e soltaram tudo pelo caminho, conseguindo assim sair da lama e avançar mais rapidamente. Pude perceber que essas almas mais desprendidas começavam a chegar num local onde existia mais luz, um espaço infinito, com grama verde, muitas flores, pássaros cantando, uma brisa suave e impregnado de muita paz e alegria.
Continuei andando e ouvi uma voz suave, nem masculina nem feminina, dizendo: “Este é o nosso mundo…”
Fiquei espantado com aquela revelação. “Por que seria o nosso mundo?” perguntei.
O ser luminoso me respondeu:
“As almas que aqui caminham erráticas pelos firmamentos efêmeros, movediços e oscilantes do mundo material, não adquiriram a compreensão de que o mundo físico é instável e sujeito a transformações constantes. A inexorável transformação do universo composto de matéria captura as almas que nele se apegam e as prende até que elas decidam soltar toda a carga ilusória acumulada.”
Isso parecia fazer todo o sentido. Perguntei aquele ser de luz que lição se podia tirar de tudo aquilo, e ele respondeu:
- Em pouco tempo você vai acordar deste sonho, mas lembre-se desse ensinamento: a vida é uma travessia, não tente montar acampamento nem conduzir cargas pesadas, pois você se prenderá e sofrerá. Apenas cruze o vale do mundo, todo ele. Não fixe, neste local transitório, a sua morada.
Autor: Hugo Lapa
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